Poucas semanas antes de escrever essa resenha fiz a aquisição de um dos livros de referência para área de recreação, jogos analógicos e digitais, educação e e qualquer área que estude o lazer e o papel do jogo na sociedade. Comprei o Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura escrito por Johan Huizinga em 1938 (por incrível que pareça e isso prova que é realmente um obra de valor inestimável, ou seja, um clássico), um holandês que além desta obra deixou outras grandes contribuições aos estudos da cultura e da sociedade.
Atuo desde 2009 com recreação, passei por algumas empresas e áreas de atuação do recreador, fiz uma faculdade, pós-graduação e por incrível que pareça só fui ter ciência da existência dessa obra no ano de 2018 a mais ou menos 2 anos. Dito isso, chego ao ponto pelo qual escrevo aqui, se eu tivesse tido acesso a esse conteúdo há alguns anos antes, certamente eu teria sido outro profissional, com uma outra leitura de mundo e uma outra (talvez mais ampla) ideia do real papel enquanto recreador.
Vamos aos livro. Huizinga traz uma visão do que é jogo e seu papel na sociedade, e nessa perspectiva trataremos jogo a tudo que se refere ao brincar, jogar, dançar, tocar, cultuar, etc. Mais a frente na leitura apresentarei o porquê do uso desta terminologia à todas essas ações distintas.
Um parêntese, aqui irei “apenas” descrever o que pude constatar sobre o primeiro capítulo do livro.
Já de início ele faz uma grande, filosófica e reflexiva exclamação “o jogo é mais antigo do que a própria cultura…”, entendemos cultura como sendo tudo que é e foi produzido pelo homem, e visto que o jogo, o caráter lúdico das ações podemos encontrar em diferentes outros aspectos da vida, cachorros a brincar de mordidas, macacos pulando e saltando nos galhos das árvores, pavões em suas danças a fim de conquistar um fêmea, e podemos imaginar e citar centenas de outras situações. Temos também uma citação muito polêmica: podemos negar a todas coisas abstratas, a justiça, a beleza, o amor, a verdade. É possível negar a existência de Deus, mas não do jogo.
Entendo o conceito de jogo a partir da leitura como ‘a vontade de fazer algo’, segundo Huizinga “é mais do que um um reflexo psicológico ou mesmo um fenômeno fisiológico”, ele tem função significante, tem um sentido de ocorrer, tem propósito. Surge como uma forma específica de atividade, algo com uma função social. Não é instinto ou reflexo (aqui pense no piscar dos olhos, seu coração batendo, sua respiração, movimentos autônomos, inerentes a você pensar ou não se eles estão acontecendo), é algo feito com desejo, há uma inclinação.
Ao longo da leitura é nos apresentado as características formais da ideia de jogo, trecho pelo qual você entenderá o porquê de todas aquelas ações mencionadas entram dentro do leque ‘jogo’ e características as quais seria muito importante que você as compreende-se em sua totalidade e compreendendo tenho a certeza que o modo como enxerga o seu recrear, o seu brincar, a sua partida de futebol com os amigos, os encontros da sua religião, irão ganhar uma nova perspectiva.
Poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não séria” e exterior a vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade livre de todo e qualquer interesse material com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios. Seguindo uma certa ordem regras, promove a formação de grupos sociais com tendência rodearem-se de segredo e sublinhar diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces e outros meios semelhantes. (Huizinga, 1938, p. 16).
Vamos analisar agora uma a uma dessas características.
uma atividade livre, conscientemente tomada como “não séria” e exterior a vida habitual: primeiro o “não séria” definida aqui como não obrigatório pelo nosso dia a dia. Algumas atividades tidas como jogo são tratadas com muita seriedade por parte de quem joga, uma partida de xadrez, uma criança brincando, futebol entre os amigos. Do mesmo modo há o jogos executados sem muita seriedade como ir ao cinema ou preparar uma refeição. O Jogo é algo realizado fora da nossa vida habitual, feita de livre escolha, eu decido fazer aquilo, é escolha minha jogar aquele jogo, dançar aquela música, ir àquele culto/missa, tocar aquele instrumento.
mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total: estando dentro do jogo você cria uma realidade alternativa, um momento em que a pessoa ou grupo de pessoas criam suas próprias regras a parte da vida habitual. Tem seus ritos, suas posições e tradições dentro do “campo de jogo”. E uma vez ali dentro, a pessoa fica imersa e com algumas características ao estado de flow.
É uma atividade livre de todo e qualquer interesse material com a qual não se pode obter qualquer lucro: de acordo com o autor o jogo deve ser algo livre, ou seja, se eu sou um esportista e ganho para desempenhar aquela atividade já descaracterizaria do sentido jogo apresentado, pois aquela ação não sai da minha vida habitual e não é de livre adesão (mesmo que eu ame fazer aquilo), eu estou ali para receber algo financeiro em troca. O jogo deve ser algo em seu tempo livre, ser feito como lazer e não como responsabilidade do dia a dia.
praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios. Seguindo uma certa ordem regras: Aqui cabe um reforço ao que já foi dito, o jogo cria uma nova atmosfera, um lugar para os que participam se sintam bem, e mesmo sendo algo prazeroso ainda detém de suas regras próprias. Em ‘limites espaciais’ podemos citar as festas populares (São João de Campina Grande, Lavagem do Bonfim em Salvador, Festival Folclórico de Parintins, etc) onde durante todo o evento há limites pré estabelecidos de onde eu podem e não podem ficar, o que podem ou não podem fazer, um tempo de determinado de início e fim.
promove a formação de grupos sociais com tendência rodearem-se de segredo e sublinhar diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces e outros meios semelhantes: não é de hoje que existem as confrarias, organizações, associações, grupos de pessoas que têm algo em comum se reúnem e entre eles existam segredos, coisas que não devem ser ditas fora dos “portões do jogo”, não que sejam segredos sombrios e sim coisas que somente dizem respeito aquele grupo de pessoas. Grupos de whatsapp de amigos de infância, colegas de trabalho, de colecionadores são ótimos exemplos disso.
Feita as devidas explicações, espero que tenha entendido as características do jogo segundo Huizinga e que possa de alguma forma aplicar o conhecimento obtido em ações práticas. E caso ainda tenha ficado um pouco nebuloso algum conceito irei recomendar um filme e uma série que talvez lhe ajude.
Primeiro quero indicar o filme Tarja Branca, um documentário brasileiro dirigido por Cacau Rhoden em 2014 e que defende uma revolução no brincar, apresentando diferentes realidades e suas proximidades com o brincar, o que ele representa ou representou. Um lindo documentário e que com um olhar atento você irá encontrará muitas, senão todas, características do Jogo proposto em Homo Ludens. Você pode assistir de forma gratuita na plataforma Video Camp.
A segunda indicação é a série da Netflix Esportes do Mundo, a série aborda alguns esportes tradicionais, únicos e perigosos de todo o mundo, assim como as comunidades e culturas onde eles se desenvolvem. Em muitos deles você também poderá encontrar traços das características do Jogo e entender como essas características se aplicam a não somente aos praticantes, mas também a todos que cercam e gostam.
E para encerrar não poderia deixar de indicar que você adquira o livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura e a partir da sua própria leitura forme sua opinião e concepção do que é o Jogo e caso tenha algo a acrescentar aqui nessa resenha sinta-se a vontade de fazer suas contribuições, é sempre bom ouvir e conversar com posições e olhares diferentes do nosso.
Fonte original: https://educacaoludica.com.br/o-jogo-homo-ludens-e-a-vontade-de-fazer/09/2020/
Kommentare